Depois eu faço

Depois eu faço

Estou absolutamente seguro que, você leitor, irá se identificar com este artigo. A não ser que você não seja humano, talvez um ET, conhece muito bem a terrível tendência que todos nós temos de deixar alguma coisa para depois. O ditado popular nos ensina que não devemos “deixar para amanhã o que pode ser feito hoje”, mas há outro, ainda mais popular, que pergunta: “porque fazer agora o que podemos deixar para depois?”.
Deixar para depois, relegar a outro momento o trabalho que neste instante nos parece pouco atrativo, adiar, transferir, atrasar, delegar, reagendar. Podemos usar qualquer nome ou expressão, mas na verdade estamos falando de uma coisa só: da procrastinação. Palavra que vem do latim procrastinare, descrita pelos dicionários como o ato de adiar, delongar, demorar, espaçar ou, simplesmente, transferir para o outro dia. E os chegados à prática são chamados de procrastinadores, o que pode, para os menos avisados, soar como um elogio.
 
– Sabe o que você é? Um procrastinador!
– Que é isso. Bondade sua!
Que atire a primeira pedra quem nunca procrastinou. E que levante a mão quem nunca ficou depois com a consciência pesada por ter procrastinado. Deixar para amanhã o que deve e pode ser feito hoje, pode ser considerado uma espécie de arte, pois exige algum talento. Uma arte maldita, é verdade, mas uma arte. Conseguir convencer os outros e, o mais importante, a si mesmo, de que é melhor deixar pra amanhã, pois hoje não dá mais tempo, faltam alguns dados e, de qualquer maneira, não tem tanta pressa assim, consome, muitas vezes, mais energia do que a necessária para a realização da tarefa.
Do ponto de vista psicológico, a procrastinação pode ser entendida como uma dificuldade em definir prioridades a partir de elementos não emocionais. Em outras palavras, dificuldade em definir o que vai ser feito a partir da importância que tem e não a partir do prazer colhido em sua execução.
Um exemplo bem concreto: qual o prazer que alguém pode encontrar ao declarar seu imposto de renda? Absolutamente nenhum. Tarefinha monótona, geralmente ligada a um sentimento de perda maior do que o de ganho. E todo ano é a mesma coisa, repórteres de TV entrevistando os retardatários, que deixam para o último dia, e torcem para que a Receita Federal informe que está prorrogando o prazo. E a conversa é sempre a mesma: “não deu tempo”, “deixei pra depois, e quando me dei conta, estourou o prazo”, e a mais patética das desculpas: “brasileiro é assim mesmo, sempre em cima da hora!”. E essa última frase é pronunciada com um certo ar de orgulho, referência a uma das manias nacionais, como a caipirinha, o futebol e o carnaval.
Na verdade, não há nada de errado em deixar para depois alguma coisa, uma vez ou outra. Adiar a resposta a um e-mail, deixar para cortar o cabelo na próxima semana, prorrogar para o próximo mês o início da ginástica na academia é normal e humano. A doença só começa a incomodar quando a procrastinação se arrasta, torna-se contumaz, ou afeta tarefas extremamente importantes. Quando a prática torna-se crônica e vira hábito, começa a ficar perigosa e a ter conseqüências até desastrosas.
Com certeza você conhece alguém que se encaixa no perfil do procrastinador. Do sujeito que se torna conhecido por deixar tudo pra depois. O famoso “empurra com a barriga”. O que deixa as coisas importantes para mais tarde, quem sabe pra quando elas deixarem de ser tão importantes. Com certeza, poucas atitudes podem ser tão danosas ao desempenho de uma pessoa, ou de uma equipe, do que esse comportamento.
Em 1955, o historiador britânico Cyril Northcote Parkinson (1909-1993) publicou nas paginas da revista The Economist, uma tese muito interessante: as pessoas sempre utilizam para realizar uma tarefa, independentemente de sua importância, o máximo do tempo disponível. Em outras palavras, se você tiver uma hora para realizar uma tarefa, é o tempo que vai levar para realizá-la, mas se dispuser de quatro dias, não tenha dúvida que irá utilizar todo esse tempo.
Interessante observar que Parkinson utilizou como população de estudo, não estudantes secundários, que estão na idade em que a procrastinação é quase uma prática obrigatória, mas oficiais da marinha britânica que, no pós-guerra, vivendo uma época de certo abrandamento das responsabilidades, começaram a reorganizar os serviços, precisando de mais pessoas para realizar cada vez menos tarefas.
A tese acabou sendo tão bem compreendida e aceita por todos, que acabou por transformar-se em uma “lei”, a “lei de Parkinson”, cujo enunciado é: “O trabalho expande-se de modo a preencher o tempo disponível para sua realização”.
A ideia dessa “lei” pode ser percebida praticamente todos os dias, tanto em nossa vida profissional quanto pessoal, se não em nós mesmos, em alguém que está por perto, convivendo conosco. Observe as pessoas ao seu redor, analise se comportamento e perceba que é isso mesmo. Dificilmente alguém dispensa o tempo disponível e antecipa a conclusão de uma tarefa, deixando o tempo livre para depois. Sempre ficamos com a sensação que, ao utilizarmos todo o tempo que dispomos, faremos o trabalho melhor.
O que está errado nesse raciocínio, é que não utilizamos todo o tempo disponível no trabalho, mas na procrastinação. De quatro dias disponíveis para a realização de um trabalho, existe grande chance que a concentração maior ocorra no último dia. E o pior é que os outros três, que poderiam ter sido mais bem utilizados, são carregados de uma certa “sensação de culpa”, que fica assombrando nosso inconsciente como um fantasma que, se tivéssemos total autocontrole, poderíamos afastar com um sopro, usando o fôlego da responsabilidade.
A pior aplicação da lei de Parkinson dá-se quando a tarefa não tem prazo definido para ser realizada. Coisas como estudar espanhol, fazer ginástica, escrever um livro, plantar uma horta podem ser jogadas para um futuro incerto, que acaba nunca se realizando. A procrastinação praticada ao extremo.
Uma em quatro pessoas encontra-se neste momento praticando procrastinação. É provável que a conseqüência seja pequena, mas, de qualquer forma, ocorre algum prejuízo da eficiência e do resultado. Mas porque, afinal, as pessoas procrastinam? Qual o nível que define quando essa prática é apenas um comportamento normal e aceitável e quando passa a ser um hábito danoso à pessoa? Questões interessantes, que têm ocupado a mente dos especialistas em comportamento humano.
Na Case Western Reserve University, próxima a Cleveland, Ohio, nos Estados Unidos, os professores de psicologia Roy F. Baumeister e Dianne M. Tice dedicam-se ao estudo de alguns componentes da personalidade que interferem no comportamento e na produtividade das pessoas, tais como a autoestima, a autoconfiança, o stress, as relações e também a procrastinação.
Conclusões importantes já foram encontradas, como a que demonstra que os procrastinadores mais freqüentes são os que têm menor consciência da realidade. Para eles, a realidade desconfortável poderá ser mudada se for ignorada. É a síndrome do avestruz. Ao relegar uma tarefa desagradável para outro momento, a pessoa espera, inconscientemente, que a mesma se resolva por conta própria durante esse tempo.
Trata-se, portanto, de um comportamento desprovido de lucidez, de maturidade. É por isso que a procrastinação começa a ser preocupante no início da idade adulta, quando a pessoa deveria estar dando sinais de independência, o que significa assumir responsabilidades por seus próprios atos, incluindo nesse departamento, o fazer as coisas certas no tempo adequado.
Procrastinar pode proporcionar um alivio, por afastar a pessoa da fonte de desprazer, mas esse alívio sempre será, obviamente, temporário, o que a coloca em uma ciranda destrutiva, geradora de ansiedade constante. Por isso não é incomum a relação entre a procrastinação crônica e a depressão, sem que saibamos qual se instalou antes. A verdade é que ambos, a procrastinação e a depressão, se retroalimentam.
Um outro aspecto, curioso, para dizer o mínimo, é que a procrastinação nem sempre deriva do desejo inconsciente de adiar o desprazer, mas também do desejo de prolongar a perspectiva do prazer. Equivale a esperar mais um pouco para tomar o copo de água, quando a sede já estiver quase insuportável. Lembro-me de uma propaganda de refrigerante que mostrava um homem que, após atravessar um deserto, entra em um bar e pede um saco de batata fritas, antes de entornar a bebida. Ele queria “provocar” a sede antes de acabar com ela.
A necessidade biológica que o homem tem de obter prazer e evitar sofrimento faz com que seu cérebro crie mecanismos às vezes divertidos, às vezes prejudiciais. Pesquisas provam que animais também são capazes dessas artimanhas mentais. O componente por trás do comportamento procrastinador é a motivação, ou a falta dela. Motivação é a condição psicológica que move uma pessoa a praticar uma ação. E está cada vez mais claro que as pessoas são movidas a esse combustível, que não pode e não deve ser carregado de fora para dentro. É uma energia emocional que as pessoas realmente eficazes têm condições de produzir por geração espontânea. E o fator primordial ao deixar uma tarefa para depois é, sem dúvida, a falta de motivação.
A falta da percepção dos motivos reais que justificam a ação (falta de motivação), acompanhada da falta de percepção da conseqüência de sua não realização só poderá desembocar em uma compreensível procrastinação. Eis porque uma visão clara da realidade é fundamental.
Uma pergunta freqüente, e justificável, diz respeito aos motivos internos, mentais, ligados ao hábito de procrastinar. Sem nenhuma intenção de classificar pessoas, alguns dos motivos poderiam ser apresentados assim:
• Dificuldade em lidar com o tempo. Há pessoas que realmente perdem a noção temporal, e não conseguem calcular o tempo necessário para a realização de uma tarefa, o que impede estabelecer uma relação entre o início e o fim da mesma;
• Necessidade imperiosa de evitar o desprazer. Algumas pessoas não conseguem se concentrar em nada que gere desprazer, ou que não gere prazer imediato, pois não estabelecem relação entre esforços e resultados;
• Falta de noção de prioridade. Muito comum, especialmente em uma época em que tudo parece importante e urgente, mas sem essa noção fica difícil a produção pessoal com resultados ideais;
• Stress. A partir de determinado nível, o stress começa a diminuir a acuidade individual, comprometendo o trabalho, pois o estressado tende a fazer escapes involuntários, dirigindo-se a tarefas secundárias, como forma de alívio;
• Autoapreciação comprometida. Pessoas dotadas de baixa autoestima e baixa autoconfiança dificilmente conseguem ser senhores de suas ações, e passam a depender da ingerência alheia, sem a qual, costumam apresentar baixa produtividade, com freqüência acompanhada de procrastinações.
Independente da causa interna, rapidamente reconhecemos, especialmente em ambientes de trabalho, um procrastinador contumaz. É aquele para quem, com o tempo, já não se dá nenhuma tarefa importante, e que vira motivo de comentários maldosos ou engraçadinhos. Ele sofre com isso, e parece vingar-se impondo a procrastinação como um estilo. Afinal, ele é assim…
E como combater essa visceral tendência, totalmente humana, presente em todos nós? E não, não dá pra responder só amanhã! Quem sabe tentando lembrar de alguns princípios comportamentais básicos:
• Fazendo primeiro o que é importante, o prejuízo provocado por uma possível procrastinação será reduzido;
• Colocando na frente as tarefas menos agradáveis, impede-se a dissipação de energia mental, que fica drenando durante o dia, impedindo os bons resultados;
• Se dedicarmos mais tempo a fazer o que é importante, mas não é urgente, quando for urgente já estará feito;
• Tarefas de execução desagradável, sempre dão resultados agradáveis, quando realizadas com determinação, além de fornecerem uma sensação de alívio;
• Perceba que você sempre tem de fazer dois tipos de coisas: aquelas que você espera de você mesmo, e aquelas que o meio onde você está espera de você, afinal, você é parte integrante dele. Quem se esquece dessa regra básica acaba marginalizado.
Portanto, mais uma vez a importância do autoconhecimento e da percepção madura do mundo se faz presente. Lembramos, então, do significado das palavras autonomia e heteronomia. Autônomo (auto = próprio, nomos = norma, lei) é aquele que escreve suas próprias normas de conduta, ou que acata as normas gerais, não por medo do castigo, mas por aceitá-las como suas, e como verdadeiras. O heterônomo apenas obedece às normas estabelecidas por outras pessoas.
É claro que o que se espera do indivíduo adulto, é que ele seja autônomo, responsável, capaz de controlar sua própria vida, fazendo as coisas certas nos momentos certos. Uma coisa de cada vez, é claro, mas com noção precisa da prioridade, da responsabilidade e do tempo. O oposto pode gerar, como filhote, mais um procrastinador. Mas, deixa pra lá, depois eu penso nisso…
 
Texto publicado sob licença da revista Vida Simples, Editora Abril.
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